quinta-feira, 19 de junho de 2014

Na Proa do Titanic, de Costas para o Mar



“O mundo jamais o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos.

Esse tipo de liberdade tem méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano, de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido alguma coisa infinita.”

In Memoriam de David Foster Wallace. Que me legou com estes dois parágrafos, o ímpeto criador, dando vida e ânimo ao texto.

Era abril de 2009, deitava calmamente num banco à espera de mais uma aula, provavelmente aborrecente, enquanto tinha em mãos um livro de Fredric Jameson: Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. Antes mesmo de entrar na graduação, o assunto já me fascinava por abordar os estudos culturais de maneira menos trivial ao qual estava acostumado. Já o tinha tido em minhas mãos em outras oportunidades, mas me considerava, na época, burro demais para entender qualquer coisa expressa pelos jargões herméticos de Jameson.

Eis que, logo no início da leitura (sabe-se lá Deus em que página) encontro uma daquelas passagens que te marcam profundamente e, sem você perceber, grava-se na “memória da alma”, para de lá, nunca mais sair. Não lembro a expressão exata, mas dizia algo do gênero: “num mundo modernizado, onde os homens movem a qualquer momento uma montanha, e dominam a natureza, a ideia de essência ou algo constante não poderia nos parecer mais estranha, num mundo onde tudo é percebido como mudança”. Não sei qual seria minha reação ao ler novamente os livros de Jameson, depois de tantos anos e descontinuidades. Mas isso, pouco importa. Naquele momento, a leitura condensava em mim, uma inquietação, fruto de uma ambiguidade.

Antes de entrar na graduação, Robert Kurz e toda sua trupe da Krisis (Scholz, Jappe, etc.) me causou comoção. Uma crítica radical ao valor e ao moderno sistema produtor de mercadorias (incluindo, o socialismo real); a negação radical (com a antipolítica, antieconomia, etc.); a radicalidade da preguiça, culminando no manifesto contra o trabalho. Uma crítica radical a toda ideia de fetiche, ao mercado, ao trabalho, a cisão de gêneros, e não a questões específicas do marxismo tradicional. Junto com isto, vieram os situacionistas e Debord, a admiração pelo espírito de 68, o Foucault do Vigiar e Punir, Deleuze, Negri, Woodstock, hippies, os filmes de Godard, Bertolucci, etc. Ainda que, avesso a classificações, era um típico libertário ao meu modo. Meu agir no mundo estava (quase que) inteiramente mediado por essas crenças.

Entretanto, toda essa ânsia juvenil por liberdade, era contrabalanceada parcialmente por certas leituras de Lukács; que de alguma forma, ressoava uma parte da crítica reativa (conservadora) ao “mundo burguês”. A minha tendência ao relativismo, ao historicismo, e ao culturalismo, morria no berço. A leitura de Jameson, acompanhada na mesma época pela de Terry Eagleton, em sua labuta contra a pós-modernidade, colocava-me em outra situação: perceber nesse espírito libertário, uma parte integrante do “sistema”.  A associação entre o pós-modernismo e o capitalismo pós-industrial, tendo no espírito do maio de 68 o seu inaugurador simbólico, tomou-me de assalto, ampliando minha imaginação e entendimento. Só muito tempo depois, desenvolveria esta percepção ainda tão vulgar.

Seja como for, simbolizada nesta ambiguidade (ainda que mal trabalhada); em mim, permaneceu viva uma sensação assustadora, ainda que, prematura: existia no desejo de ruptura e de negação ao mundo presente, uma confirmação deste mundo, ativando suas engrenagens (o progresso), e fazendo sua dialética prosseguir. Na minha mente de vinte anos, o espírito de 68 deixou de causar sonhos românticos com a “imaginação no poder”, e passou a representar outra coisa: parte da “cultura do novo capitalismo”. É da minha personalidade, ser avesso a certas convenções, mas percebia no “ensimesmamento” em nome da liberdade da moçada libertária mais uma delas. Somam-se a isto, experiências concretas que, mostravam-me a irresponsabilidade, a imaturidade, a falta de compromisso e lealdade. A busca histérica por um ideal de mundo sempre resulta em seu contrário. Sobre isto, um trecho de A Euforia Perpétua de Pascal Bruckner, está repleto de razão:

“O que ocorreu para que a crítica da sociedade de consumo tivesse tão rapidamente a partir dos anos 60, conduzido ao triunfo do consumismo? É que as palavras de ordem lançadas à época: “Tudo imediatamente”, “Morte ao tédio”, “Viver sem prorrogação e gozar sem entraves” se aplicavam menos ao domínio do amor e da vida do que ao da mercadoria. Acreditava-se estar subvertendo a ordem estabelecida, mas favorecia-se com total boa fé a propagação do mercantilismo universal. É no plano da fome e da sede que todas as coisas podem se tornar imediatamente acessíveis, já que o espírito e o desejo têm seus ritmos próprios, suas intermitências. A intenção era libertária, o resultado foi publicitário; liberou-se menos a libido do que o nosso apetite por compras sem limites, nossa capacidade de agarrar sem restrições todos os bens. Bela imagem do revolucionário como prospector oficial do capital é no que se transformaram afinal o movimento operário, o marxismo, e a esquerda radical, capazes de criticar uma falha no sistema, mas de permitir-lhe se modificar a um custo mínimo. Um pouco como aqueles hippies que descobriram lugares sagrados de turismo na Ásia, na África, ou no Pacífico trinta anos antes de todo mundo, mas que eram movidos pelo desejo de fugir e se isolar. É absurdo criticar o consumo, luxo de crianças mimadas. Ele tem de atraente o fato de oferecer um ideal simples, inesgotável, acessível a qualquer um, contanto que esteja solvente. Não exige outra formalidade senão ter vontade e pagar. O consumidor é cevado, saciado como um bebê alimentado a colheradas. Seja o que for que achemos disso, divertimo-nos bastante, pois, como na moda, adotamos sofregamente o que é proposto como se tivesse sido escolhido por nós”.

Faço todo esse preâmbulo a uma época de minha vida intelectual, mas que foi ainda mais significativa em casos concretos (não só na militância), para introduzir um tema que me é caro: a revolta permanente não só como elemento integrante, mas uma espécie de lança do mundo moderno, ao mesmo tempo, universalizando-o em suas bases e nos trazendo a sua decadência. O homem revoltado, mostrado por Camus, é a herança do mundo moderno, contra o qual ele aparentemente se contrapõe. Homem permanentemente revoltado que hoje, fez da indolência militante (de longe, generosidade; mas, de perto, busca pelas fantasias próprias de um paraíso particular) a sua morada, e da revolução um contínuo integrado, sendo realizada diariamente como uma infernal previsão, levando ao limite aquela incompatibilidade tão bem notada por Camus entre a revolução e o amor. Não me excluo de nada que aqui analiso, pois, tudo o que observei foram frutos de certas situações que vivi, em lugares-limites que fui, e em experiências que observei. Tive que me debruçar, para investigar a revolta em mim mesmo. Este texto é também uma história de busca e um método de autoconhecimento. Em certa medida, é uma prazerosa e dolorosa autocrítica.

Desde então, assusta-me de sobremaneira, a interligação entre: o homem revoltado com o mundo que lhe cerca; o pragmático liberal (de direta ou esquerda) que acredita na estabilidade do mundo institucional, sem vislumbrar a sociedade sufocada por tantas camadas formais, perdendo qualquer substância que lhe dê sentido e comunhão; e o libertário utilitarista, que acredita no poder do desejo individual como remédio para todo mal.

Olhando assim, a questão parece ser: apoiar ou negar o mundo que aí se encontra? Porém, esta pergunta cria uma espécie de caixa com fundo falso, onde até a saída não passa de uma miragem. A solução para este enigma reside na falta de solução. Todas elas são irrelevantes, afinal. É preciso largar este falso dilema, para reconquistar nossas percepções e o senso de responsabilidade de ação no mundo: ser responsável por seus atos, reconhecê-los, e assumir as consequências. A dignidade mora na responsabilidade para com o outro.

Não há mundo melhor. Somos seres incompletos, aspirando alguma religação. A incompletude e a ambivalência das situações práticas do nosso mundo material fundam a cultura. Tentar eliminar os limites da vida é – de partida – revoltar-se contra a própria estrutura da realidade, dos sentimentos que circulam entre todos nós, e fazem a ponte entre a objetividade e a subjetividade, nos comunicando. Estar no mundo, buscar sua voz interior, compreender suas circunstâncias e o seu ser, obriga a uma visão de mundo que contemple sempre as perdas e os ganhos, sem grandes aspirações políticas totais. Sem ilusões da carne: o pragmatismo como cálculo social e afetivo. A vida reduzida a política torna-se pobre, por que não é nela onde se encontra os seus grandes enlaces e encontros. Contra esta política como doxa do mundo moderno, a arte virtuosa parece o último refúgio da verdade. A literatura de Dostoiévski expressa isto.

Seja como for, neste texto, trato de uma inquietação. O que me preocupa é mais certa visão de liberdade, de humanos vaidosos e entregues ao culto de si mesmo, que tenciona a sociedade moderna aos seus limites de destrutibilidade. Meu interesse é investigar e refletir o mundo que se perde em busca dessa “liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas caveiras, onde reinamos sozinhos”. A liberdade de venerar a si mesmo, dogmática, inflexível, que não se mistura, e tem “nojinho” da dura realidade. Em contraposição, a liberdade que valoriza a disciplina, a lealdade, o compromisso, o desejo cultivado e não as fantasias e os impulsos mais primitivos, sem que deles se prescinda. A liberdade que encontra a sua voz interior, a sua personalidade. Esse texto não é uma peça de acusação política, mas um exercício de amor à vida que merece ser vivida, com sinceridade, verdade, firmeza, constância, bem-aventurança. Dedico-o a indivíduos de verdade: os que não se dobram diante da crise de personalidade.

1.
A chegada ao Ocidente de livros gregos e latinos, na baixa idade média, ao mesmo tempo em que, a escolástica entrava em crise, criou descontinuidades na história intelectual. A partir, sobretudo, do Século XIII, crescendo nos dois séculos posteriores, desenvolveu-se na Itália, uma tendência a atribuir valor elevado aos estudos das litterae humanae, tornando a Antiguidade Clássica (grega e latina), um paradigma para as atividades culturais e artísticas. Neste sentido, surge o "Humanismo", indicando a tarefa do literato, que iria além do ensino universitário, entrando pela vida ativa e tornando-se "nova filosofia".

O “Humanismo” foi o primeiro adversário mais sério da escolástica. Ele representava certa hostilidade contra o dogma religioso, e tendia a tirar a autoridade dos clérigos e passar para os cortesãos e literatos. Outra característica desta época é a valorização da capacidade racional, como elemento que nos levaria ao conhecimento da realidade, o que costumamos chamar de Racionalismo. É também uma época de valorização do conhecimento empírico e do hedonismo.

Esse período de modificações na história intelectual transcorre paralelamente ao “Século de Ferro”, situado entre 1550 e 1660, tomando como referência as grandes transformações sociais, políticas e econômicas trazidas pela implantação do capitalismo, e a outros acontecimentos históricos, como a Guerra dos Trinta Anos, que delineia a paisagem política e cultural da Europa moderna. Uma mudança ocorre: na vida material das pessoas, com a ascensão da burguesia, renascimento do comércio, crescimento das cidades; na maneira como as pessoas enxergam e se sentem parte do mundo; e no clima intelectual da Europa. Essas mudanças na mentalidade são sentidas nas obras de pensadores como Copérnico. O deslocamento da terra, obra prima do Deus criador, do centro do universo significou que o homem, tido como o supremo ato da criação, deixou também de ocupar seu lugar de criatura sujeito a um Deus. Mas, um personagem, em especial, destaca-se como filho dessa mudança: Francis Bacon. Ele incorpora esse novo espírito da crítica, assentando o que viria a ser a ciência moderna.

Francis Bacon destacou-se pelo combate as concepções da idade média e pela criação de outros princípios, fundando a ciência moderna, em seu Novum Organum. Nessa obra, Bacon tentou demonstrar as inadequações da ciência aristotélica e do apriorismo tomista. Ele argumenta que a ciência aristotélica por ser meramente dedutiva, não proporciona um método investigativo e instrumental, que possa operar na natureza, e chegar a fatos novos. Bacon propôs o método indutivo, por onde – através do experimento – poder-se-ia chegar a postulação de leis universais, sobre a base das instâncias observadas. Embora, a criação desse método tenha sido mais especulativa, as críticas de Bacon à tradição aristotélica abriram novas partas para o pensamento científico.

Desta forma, a partir de Bacon, surge a crença de que a natureza material é um código escondido, que não se revela diretamente ao homem, disfarçando-se. Portanto, para compreendê-la, seria necessário, através de um experimento, dominá-la para obriga-la a dar uma resposta. E este consiste, portanto, na instrumentalização das forças naturais, visando a sua apropriação. Kant, mais tarde, resumirá o espírito dessa nova ciência ao dizer que o cientista não se coloca diante da natureza como um observador, de maneira contemplativa, mas como um juiz de instrução.

A ciência moderna “deverá ser ativa, operatória, eficaz e não contemplativa e verbal. Ela é intervenção na natureza, modificação física desta. Essa relação ativa, e até violenta, caracteriza a pesquisa e aplicação”. (HOTTOIS, 2008: p.66). A ciência moderna precisa ter operacionalidade e eficácia, ao invés de ser contemplativa e verbal. Ela é instrumental, por que precisa intervir na natureza, permitindo que o homem seja senhor e mestre dela. O indivíduo é colocado no centro deste projeto ao isolar elementos da natureza, e não contemplá-la em sua presença total.

Os experimentos são realizados dentro de certas condições, a partir de hipóteses e perguntas pré-estabelecidas, recortando o fenômeno das suas demais relações. O que é examinado não é a realidade em sua presença total, com suas ambiguidades, mas certas possibilidades, isolando a concretude. A ciência moderna esconde a ambivalência do mundo. A própria dialética inerente ao homem, com sentimentos ambíguos que circulam e congelam o tempo, é suprimida. Porque a realidade concreta é um mistério, e só pode ser apreendida, em certos aspectos, por contemplação e observação.

Com o fim do espírito contemplativo, a ciência instrumental – e consequentemente, a técnica e a modernização – insere um elemento subjetivista inegável. Representado pela supremacia do interesse, da ideia de meios e fins, e de adequação (razão subjetiva), sobre as coisas racionais por si mesmas (razão objetiva). A ciência passa a indagar não a substância, mas a função. A ciência moderna nega as pretensões essencialistas da metafísica. Essa nova ideia de ciência, metodologicamente hipotética e controlada exige adaptações às novas instituições, academias, e laboratórios, criando uma separação entre ciência e fé.

A natureza deixou de ser uma experiência real, ambivalente; pois, ao mesmo tempo em que, nos reconfortava com comunhão, ameaçava nossa auto-conservação. Dominando-a, para conhecer suas partes específicas e melhor conservar-se, colocamo-la como objeto de experimento científico. Para compensar essa perda da totalidade e da experiência real, entra em campo o elemento da medição e exatidão matemática. Mas esta, também vem do sujeito investigador, que não pode compensar a perca das relações reais, da experiência, e da presença total da realidade. E disto, decorre o subjetivismo moderno, que – de certo modo – nega a realidade concreta.

A nossa visão da natureza material passou a ser modelada pelos nossos interesses. O indivíduo encontra-se, então, no centro e no topo da realidade. E a grande promessa do mundo moderno é que por meio da ciência e da técnica, o homem poderia se libertar da barbárie, da fome, da ignorância, da injustiça, e se autoconservar melhor. Como desejava Bacon, o saber deveria imperar sobre a natureza desencantada, não reconhecendo limites ou barreiras. “No trajeto para a ciência moderna, os homens renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade” (ADORNO; HORKHEIMER; 2006). Recusando aquilo que não se enquadra nos critérios de cálculo e utilidade, a ciência moderna busca o método para operar os fatos a serem ordenados, classificados, permitindo a explicação, a previsão e o controle.

Em compensação, com seus experimentos, a ciência moderna alargou o campo das possibilidades, obtendo muitos resultados, que geraram aplicações técnicas, e posteriormente, processos de modernização. Existindo, desta maneira, uma relação entre uma nova concepção de ciência, mais instrumental, que leva a conquistas técnicas; novas relações sociais, com a ascensão da burguesia; uma nova maneira de ser e estar no mundo; e, novos conceitos introduzidos na filosofia moderna. Representando um novo pensamento e uma nova sensibilidade que emergiram, resultando em profundas transformações socioculturais, com a construção de novas sociabilidades e sensibilidades.

A novidade incessante, gerada pelo domínio técnico, acelera o tempo, abre o mundo, dando margem a uma nova maneira de pensá-lo, de fazer cultura. O perpétuo vir-a-ser, turbilhão moderno, desbrava distâncias, vai “desmanchando no ar” o que antes era sólido. A ciência moderna, as inovações técnicas, a modernização das cidades, alterará profundamente as paisagens e cartografias da vida. O trem, as estradas, as maquinarias, as fábricas, o telefone, e tantas invenções, invadirão o “mundo das tradições”. Se ela nos trouxe mais segurança e comodidade, trouxe também, perda da experiência da presença total (e ambivalente) da realidade, da contemplação, o esquecimento do transcendental e dos valores que dão sentido a uma comunidade, agora meras formas abstratas.

2.

O projeto moderno coloca o indivíduo no centro do mundo, ao prometer que com uso da razão subjetiva (pragmática, instrumental, etc.), do esclarecimento, das luzes, da ciência moderna, nos autoconservaríamos melhor, através de um ordenamento racional e técnico. A modernidade marca também a ascensão do mundo das instituições, do estado-nacional, e da democracia formal, inaugurando a “Era dos Direitos” (Bobbio).

Este projeto é operado, como notado por Max Weber, através da ciência e do Estado. Neste sentido, Weber irá defini-la como a época da “organização capitalista racional assentada no trabalho formalmente livre”. Ou seja, é a era do advento da “organização industrial racional”, orientada para um mercado, em que as empresas não estão mais vinculadas a uma unidade doméstica, e criam sua “contabilidade”. Para isto, o capitalismo não pode prescindir da ciência moderna e da técnica. Esse processo de racionalização penetra as instituições, com o Estado-nacional, que tem sua administração sendo realizada por especialistas e assalariados, ou seja, por uma burocracia independente.

Na cultura, segundo Weber, ocorre um projeto de autonomia, correspondendo à ideia de domínio pessoal nas esferas de valoração humana (como a ciência, a arte e a moral), em detrimento das relações e símbolos metafísico-religiosos que, anteriormente, davam sentido e comunhão à vida humana. Weber denomina este processo de “desencantamento do mundo”: “racionalização” crescente que se manifesta na conduta humana, ao invés das explicações mitológicas ou simbólicas.

Não só pelo crescimento do mercado, mas por ele ter se tornado central em nossa vida cotidiana, podemos falar também – no mundo moderno – numa lógica abstrata do valor. Independente dos formidáveis benefícios que ganhamos com o mercado, não há como negar que as relações objetivas entre as pessoas nele é uma relação – em certo sentido – entre coisas. Ou seja, as relações entre as pessoas no mercado são entre portadores privados de dinheiro/mercadoria. E já que estas relações são mediadas pelas mercadorias/dinheiro, elas tendem a autonomia, podendo afetar a maneira como nos relacionamos com as pessoas em outras esferas. A estrutura mental dessa lógica abstrata do valor (sua equivalência universal) influencia na maneira como produzimos cultura, e de como lidamos com o mundo.

No Fausto de Goethe, o diabo Mefistóteles costumava dizer: “tudo que existe merece fenecer”. Na roda-viva dos processos de modernização e nas engrenagens do progresso, tudo parece se transformar em perecibilidade, mudança, devir. Tudo nos parece descartável. Neste sentido, o torvelinho moderno gera um impasse: promete felicidade, progresso, transformação do mundo ao redor, mas, ao mesmo tempo, nos tira a identidade, os encontros míticos e simbólicos, a constância, as bases transcendentes, aquilo que é sólido. A modernidade ultrapassa as fronteiras entre nações, religiões e culturas, numa espécie de universalismo formal; porém, de maneira paradoxal, vivemos na eterna desintegração, na cultura do repúdio (onde tudo está sempre a se reciclar, começar do zero, de novo e de novo), num turbilhão de mudanças, disputas, e contradições entre o antigo e moderno, gerando mal-estar e angústia.

Pois, no cerne do projeto moderno há uma promessa de felicidade, baseada na ideia de que a humanidade está sempre progredindo em direção à civilização. A justiça e a bem-aventurança saíram do céu e vieram para o mundo terreno, num processo de secularização. O paraíso não deveria ser mais esperado para o além da morte, mas dever-se-ia ser construído aqui e agora, desde que se confiasse na razão, nas instituições, na ciência. “O paraíso terreno é onde estou”, dizia Voltaire. A ideia de progresso suplanta o da eternidade, e o futuro é o refúgio da esperança.

Mas, evidentemente, as promessas feitas pela modernidade não poderiam ser cumpridas. Otimista com o futuro, embriagado de expectativa pelo paraíso próximo, da felicidade perene, e do gozo permanente, livre de todos os males e limites; os modernos se depararam com o abismo, o Século XX. Duas grandes guerras, genocídios, holocaustos, ditaduras coletivistas que matariam mais do que quaisquer outras na história da humanidade, desagregação social, anomia, desenraizamento, perene mal-estar. Se antes admirávamos o mar e a promessa de terra futura onde jorraria leite e mel, de dentro do Titanic, o navio-símbolo do progresso; agora, voltamos nosso olhar para dentro deste navio (ou para dentro de nós mesmos), fazendo dele o próprio palco de nosso prazer efêmero, que nada mais é do que uma revolta permanente contra a realidade. Pois, começar sempre de novo é esquecer aquilo que já se foi, onde tudo é destruído – ao ser integrado – em busca de uma salvação hipotética: salvemos todos, ao tudo destruir, para do “zero” o mundo recomeçar.

O fim da Grande Guerra e a irrupção de 1968 foi significativo no novo estágio do capitalismo e daquilo que gosto de chamar de “hipermodernidade” (Lipovetsky). A base do capitalismo deixa de ser a poupança e o trabalho, e passa a ser o consumo e o desperdício. A vertigem de 1968 inaugura um novo dogma de felicidade, adaptado aos novos tempos, contra a visão restritiva. Agora é proibido proibir, mesmo que isto seja uma abstração sem sentido. A felicidade virou um imperativo, e a redenção passa pelo corpo.

O projeto moderno concretiza-se na globalização, no império das instituições globais (ONU, UNESCO, etc.), na mercantilização da vida, na onipotência do indivíduo, mas também, na universalização do consumo, na ampliação do conforto, e na segurança para lidarmos com nossas próprias vidas; dando-nos ainda mais mostras de suas consequências. A ideia de progresso foi ressignificada, e continua presente na gramática política e no cotidiano das pessoas, não sendo mais defendida de maneira ingênua. O moderno turbinou-se, e como em todo triunfo falta equilíbrio, já se nota no ar o cheiro putrefante de degradação, decomposição e decadência.

A Hipermodernidade é o “império do efêmero” (Lipovetsky), uma cultura do excesso, do sempre mais, pois tudo se tornou intenso e urgente. A sociedade voltou-se para o hedonismo, e agora podemos tudo: pois, temos um dever de felicidade (e não mais um direito). O foco é o prazer mais imediato, e não a realidade mais profunda, e ai de quem contrariar as fantasias e os desejos alheios. O nosso tempo, ao acompanhar a intensidade e (falta de) sentido de nossa vida, virou flexível e fluído. A instabilidade é a regra.

Entregue as suas fantasias, ao dirigir os “seus reinos pessoais”, o homem hipermoderno desfruta de sua liberdade a partir de uma postura impulsiva, e não raramente, histérica. Sem voz interior, mudando a cada instante, ensimesmado, mentindo para si mesmo, perdido sem a tradição e sem poder contar com reflexões a cerca de sua conduta, este sujeito vira um náufrago da existência, uma espécie de “homem-geleia”, onde a inteligência já virou uma pasta, e a confusão e falta de sentido predominam em suas atitudes. Em síntese, perdeu-se a experiência.

3.

A carnavalização dos paradoxos e a destruição do referente, marcas do mundo hoje, possui sua morada no subjetivismo da filosofia moderna. Para René Descartes, na interioridade do homem, ou seja, através da razão humana, a luz natural que o homem possui em si mesmo, sua racionalidade, é que se pode chegar à verdade, e desta maneira, justificar a ideia de ciência, através do método e da dúvida.

Portanto, o conhecimento apodítico não se encontra numa entidade objetiva, ou na estrutura da realidade, mas no sujeito pensante. Com Descartes e Francis Bacon, observamos que nas origens da questão do conhecimento para o mundo moderno, encontra-se o “primado do sujeito”. Com Descartes, exacerba-se a estranheza e revolta quanto à incerteza do conhecimento humano, o que evidentemente levaria a decepções. Logo em seguida, um século depois, chegamos ao empirismo de David Hume, que nega a possibilidade do conhecimento apodítico, colocando até as noções básicas da lógica como incertas. Nascemos com uma folha em branco, aonde o conhecimento sensível vai moldando-nos. O ceticismo de Hume já é reflexo desse primado do sujeito colocado pela ciência moderna e pelo racionalismo, sendo pessimista quanto a sua solução.

Num esquema realista, o conhecimento é o conhecimento das coisas, e as coisas são transcendentes a mim. Num esquema idealista, como o kantiano, pode não haver nada a não ser minhas ideias, e assim, as coisas são algo imanente, e meu conhecimento é de minhas próprias ideias; ou minhas ideias são das coisas, onde estas dão-se em minhas ideias, sendo ideias das coisas, e não só minhas, aparecendo como fenômenos.

Kant distingue a razão pura da razão empírica, e a razão prática da razão teórica. A razão teórica quer estudar o objeto em si (por exemplo, o homem em si, a antropologia filosófica), o que ele é; enquanto, a razão prática quer estudar a forma do sujeito cognoscente realizar-se no mundo: o que eu devo fazer. A fonte do conhecimento tanto da razão prática como da razão teórica poderia ser a razão pura ou a razão empírica. Nesta, chega-se ao conhecimento procurando-o na experiência, na realidade empírica; já na razão pura, chega-se ao conhecimento procurando-o nas ideias inatas, com as quais já nascemos. Kant chega a seguinte conclusão: só existem a razão teórica empírica e a razão prática pura. Então, o caminho da moral é exatamente o oposto da razão empírica, pois existe uma lei moral dentro de mim (o imperativo categórico). E só é possível conhecer as coisas a partir da experiência. Assim, nada conhecemos da natureza em si, mas só dos nossos esquemas mentais projetados.

4.

O indivíduo ensimesmado do mundo moderno, que se considera a própria encarnação da verdade, mostra grandes doses de vaidade. E esta, é o desejo de atrair a atenção e admiração das outras pessoas, cristalizando uma imagem pessoal forte que precisa ser reverenciada. Geralmente, pessoas muito vaidosas possuem problemas de autoestima, não pela falta de atenção, mas pela personalidade frágil: basta alguém não comprar sua aparência de vencedor, para entrar em parafuso.

O ser humano é incompleto, traz dentro de si um vazio interior. Mas, quanto mais frágil é sua personalidade, quanto menos ele tem consciência de si, dos seus méritos e defeitos, mais precisa da aprovação alheia. A vaidade é reforçada para compensar um vazio interior aterrorizante. Vaidade é medo, por fim. Medo do fracasso, porque ele nos humaniza, mostra que não somos fortes como um Deus imponente.

Só um indivíduo frágil, sem voz interior, sem consciência, sem vida própria, e ao mesmo tempo, tão dono de si mesmo e vaidoso, pode se dissolver na massa. O “homem-massa” não faz parte de uma classe, mas é uma forma de viver o mundo de maneira peculiar, ao não possuir preparo para o seu autogoverno. Assim Ortega y Gasset define o “homem-massa”:

É o homem previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas “internacionais” (…) só tem apetites, pensa que só tem direitos e não acha que tem obrigações: é um homem sem obrigações de nobreza.”

O “homem-massa” produz a cultura do repúdio. E a cultura do repúdio é a cultura do esquecimento, pois começar sempre de novo é esquecer daquilo que já se foi. Expostos a mudança incessante, e a perda de referências, o indivíduo fica confuso, entregue aos impulsos. Sua personalidade passa a ter a mesma constância de uma geleia, e o seu cérebro vira uma pasta, onde nada mais se distingue. As vivências passadas não se tornam experiências, porque não há mais aprendizado. O que se viveu deve ser esquecido em prol do novo acontecimento. Sem a reflexão do ocorrido, o homem não se torna maduro, pois não acumula mais experiências.

Por não possuir memória e experiência, o “homem-massa” não atribui a si um valor, não se enxerga como uma personalidade; mas sim, como um autômato de prazeres, fantasias, e impulsos imperiosos (encanto consigo mesmo), tornando-se parte integrante de um coletivo, já que todos os humanos são legalmente iguais. Afirma Ortega y Gasset: “Ingenuamente, sem ser arrogante, como a coisa mais natural do mundo, tenderá a afirmar e qualificar como bom tudo o que tem em si: opiniões, apetites, preferências ou gostos”.

O homem maduro, ao contrário, possui uma íntima necessidade de apelar para uma norma superior, colocando-se a serviço dela, exigindo mais de si do que dos outros (enquanto, o homem-massa nada exige de si), ao não se colocar como medida da verdade. O “homem-massa” é violento em suas intervenções, porque se julga o umbigo do mundo. A sua socialização foi efetuada pela rígida identificação com um grupo de ideias, contentando-se com elas, sem precisar da contínua busca intelectual. Sobre isto, Ortega y Gasset nos diz: “Não é que o vulgo pense que é excepcional e não vulgar, mas sim que o vulgar proclama e impões o direito da vulgaridade, ou a vulgaridade como um direito”.

O ser humano frágil, diluído na massa, crê ser possuidor de ideias, mas não sabe formá-las, só reproduzi-las como meio da sociabilidade grupal. Um novo tipo de homem, que nega as certezas, mas que se mostra decidido ao impor suas opiniões, limando de sua convivência o que não se adequa a elas. Ergue-se como representante da liberdade, mas atua de maneira dogmática, direta, impulsiva, e – não raro – violenta. Este homem diluído na massa é herdeiro direto do projeto moderno, mesmo que contra ele, possa se voltar. Por isto, fala em nome da diferença, ao mesmo tempo em que, na prática, odeia-a profundamente. O “homem-massa” comporta-se como uma “criança mimada”, pois possui a impressão radical de que a vida é fácil e simples, sendo furtada e limitada por poderes externos a ela. Por isto, pensa que pode em qualquer lugar se comportar como se estivesse em sua casa, fechando-se a qualquer instância ao impor sua opinião vulgar.

O mundo moderno também corresponde ao advento da banalidade, da vulgaridade, e da massificação da cultura. A banalidade é a imanência total da humanidade em si mesma, o império da trivialidade, criando dois tipos de prazeres: a exaltação e a monotonia. A vulgaridade é a cópia barata, a simulação daquilo que não se é. O vulgar se instala no lugar daquele que imita e pretende a ele equiparar-se. Nisto, mora a falta de estilo do burguês, que ao tentar imitar as maneiras e vestimentas do nobre, substitui a simplicidade e elegância pelo exagero, resultando num pastiche exemplar. Sobre a massificação da cultura, diz Ortega y Gasset: “A característica do momento é que a alma vulgar, sabendo que é vulgar, tem a coragem de afirmar o direito da vulgaridade e o impõe em toda parte”. As qualidades humanas foram equiparadas (como duas mercadorias), diluindo todo destaque pessoal, e brilho singular.

Perdido num mundo fragmentado, sem a profundidade e constância do reconhecer-se no outro, sem identidade, e sem a experiência transcendente que lhe dá um senso e sentido superior; o homem (hiper)moderno mesmo desfrutando de sua liberdade, sente-se frágil diante dos outros e do mundo, pela ausência de laços (os consultórios de terapia estão cheios, aliás), fruto da vaidade, da onipotência e do ensimesmamento deste sujeito. Para suprir essa ausência, ele procura uma identidade num reconhecimento abstrato. Não raro, este “homem-massa” secularizou os antigos laços reais e profundos, substituindo-os pela ideologia (seja como senso comum, ou como sistema de ideias), fazendo dela seu laço de sociabilidade e identificação grupal. Um laço tão frágil como nossas certezas sobre o mundo material. Por isto, vivemos numa grave crise de personalidade. E os políticos, em geral, hão de ser incapazes disto negar. Indivíduos de verdade, estamos a sua procura!

Acontece que, a conquista da sua voz interior, de sua personalidade, do desejo cultivado de bem-aventurança para além das fantasias de nossos impulsos, não exige apenas um profundo debruçar-se sobre si mesmo, mas isto, num processo de encontro com o outro, rico e gerador de experiências. Onde o “eu maduro” só se forma ao reconhecer-se em outro.

Mas, como perdemos a capacidade de transformar vivência em experiência, nos acostumamos a viver uma vida oca, fútil, frágil, sem sentido, sem significados, e agora, desorientada, sem comunhão. Num mundo com pessoas tão pobres de experiência, não há senso possível de responsabilidade. Pois, esta exige um indivíduo consciente de seus atos, e dono de sua voz interior, que lhe acusa quando necessário.

Os homens deixaram de pensar sobre a ambivalência da vida e de ter perplexidade diante do complexo mundo moral e de seus limites. Pelo contrário, agora todo e qualquer limite precisa ser suplantado em nome do princípio do gozo e do dever imperativo de felicidade. Neste mundo, pensar na substância das coisas virou um pecado.

A própria gramática política perdeu qualquer sentido e referência. Por exemplo, a esquerda radical agora, brada contra o progresso, ao mesmo tempo em que, age como um iluminista deliciando-se com o deslocamento contínuo de uma aparente luta que, vai vencendo contra seus “inimigos”, no plano cultural. Na base, é um raciocínio progressista, com o deslocamento do sentido das palavras, pelo acúmulo de conquistas.

O debate nas redes sociais também perdeu qualquer sentido, se é que, um dia teve um. Já não se trata mais de debater um tema espinhoso e cheio de nuances e ambivalências, com frases-feitas, jargões de manuais vulgares, ou coisas do gênero. Agora, o debate é feito com o puro sentimentalismo grupal, de maneira histérica, com “memes”, e frases tautológicas que nada dizem, como: “sabe de nada, inocente”. Já não se pode mais distinguir o original da paródia. Uma manada de “homens-massas” aguarda ansiosa para saber da verdade de seu grupo, a espera do grande momento: atacar o adversário. Sem qualquer reflexão, eles buscam por bodes expiatórios que, em tese, impediriam o esperado paraíso sob a terra. Já se foi o tempo onde não era raro ver indivíduos pensantes, de personalidade, sobressaindo-se sobre seus grupos, reafirmando sua posição, e demarcando seu pensamento.

Seja como for, o projeto moderno é baseado em liberdade, mas especificamente na libertação de um homem; mas, tudo nessa vida possui dobras. O que era pra libertar, também domina. O homem queria se conservar melhor neste mundo, com conforto e segurança, e agora vive o pior tipo de escravidão: a do próprio impulso. Estar submetido perenemente aos jugos de sua vontade imediata é já viver o inferno, sem precisar de crença alguma. Ao tentar dobrar a realidade às suas fantasias e impulsos, como a técnica faz com a montanha, o homem permanentemente revoltado enuncia suas crenças contra o mundo liberal, mas ele nada é além desse espírito moderno indo ao seu limite. De nada adianta a liberdade, sem a unidade da experiência.

Poder-se-ia estranhar essa identificação do homem revoltado com o ensimesmamento, já que ele – em tese – luta pelo bem-comum, arrisca sua integridade física, abre mão de conforto, segurança e de sua vida privada, para lutar pelos outros. Hai de tremer diante de uma injustiça, este é o lema do homem indignado. Com certeza, há algo de muito belo nisto. E mais: neste impulso desesperado, certamente mora um suspiro final, diante do sentimento de morte de uma vida autêntica, que lhe tiraram, e da qual, ele é a máxima e ambígua expressão. Entretanto, é um tipo de beleza perigosa que, até agora, sempre terminou em cabeças cortadas, gulags, tiranias, e perseguições.

Do que se trata, então? De desmistificar a oposição: “coletivo” versus “individual”. A revolta, a rebeldia, a transgressão, a resistência, são partes do mundo, que sempre existiram e hão de existir. Todavia, o homem revoltado é aquele que se sente permanentemente insatisfeito com o mundo em que vive, estando sempre indignado, querendo dobrar a própria realidade ao seu desejo (a ideia de revolução).

O homem revoltado não defende uma causa específica, ele vive e se identifica com várias causas, dando-lhes unidade, impondo-as sua pessoalidade. Assim, para ele, não se trata de defender, por exemplo, a melhora do transporte público em sua cidade; mas, de vivenciar essa luta, identificar-se com ela, entregar sua paixão pessoal e seus impulsos, em nome não da causa, mas de uma fantasia histérica, fruto de um impulso transbordante para fugir da mediocridade da vida burguesa, tomada pelo tédio. Para realizar essa fantasia, ele entrega seu coração. Ao mesmo tempo em que, ele pode encontrar-se com o outro, ajuda-lo, e contribuir com alguma coisa, ele o faz pensando em si, e em sua realização pessoal, gerando um encontro enganoso e efêmero, que dura tanto quanto o auge de sua entrega. Isto no melhor dos casos, em outros, ele fala em nome do “bem-estar” comum, quando, na verdade, está tutelando o resto da sociedade. Nisto, consiste a dialética entre o individual e o coletivo, simbolizada em todas suas tensões, na figura do homem revoltado. Entretanto, é cada vez mais difícil distinguir nos movimentos de resistência e revolta, a figura do homem revoltado daquele que está preocupado em resolver uma questão específica.

Acontece que, na base de formação desse homem, encontra-se a acídia, ou seja, o cansar de si mesmo, imposto pela apatia do cotidiano do mundo moderno. Cansados de segurança e conforto (não por acaso, os revolucionários sempre saem das classes mais abastadas ou médias), entediados, e sendo formados para ser a medida do mundo e da verdade; estes indivíduos frágeis sonham com uma harmonia perdida, esplendor que, para se realizar, só pode ser também um “sonho de domínio”, numa tentativa de comunhão para se auto-afirmar desesperadamente.  

Por isto, os regimes totalitários sempre explodiram o cotidiano, e contra a banalidade da vida burguesa, implantaram o estado de terror e guerra contínuos. Afirma Pascal Bruckner, sobre a contradição entre as promessas de “fervor sublime” e a lógica de rendimento do sistema capitalista:

“A grande utopia dos anos 60, como vimos, foi decretar o prazer perpétuo, o estado de felicidade permamente. Tratava-se de cristalizar o escoamento desordenado dos dias em um só instante de fervor sublime, de imergir o cotidiano na efervescência. Utopia magnífica e terrível da qual os situacionistas foram os principais porta-bandeiras. Mas os inimigos do tédio, repetindo-nos que “os homens vivem em estado de criatividade 24 horas por dia” (Raoul Vaneigem) adotam a respeito do prazer uma lógica do rendimento igual à do sistema industrial. Nos dois casos é preciso maximizar, submeter tudo ao imperativo da rentabilidade. As volúpias, assim como a produção, não poderiam tolerar o menor intervalo. É por esta mesma razão que os partidários da intensidade manifestam a respeito desta existência imperfeita a mesma animosidade que os cristãos de antigamente a respeito da condição humana”.

A revolução é um ato contra a memória. Ela rompe com a tradição sem superá-la, fadando-a ao fracasso e à violência. O que distingue o homem do animal é sua capacidade de reter memória, como sabia Ortega y Gasset, “romper a continuidade com o passado é querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o orangotango”.

Afinal, devemos criticar ou apoiar o mundo moderno? Falso dilema. Devemos avaliar perdas e ganhos, para com isto, reconquistar nossa experiência. Da ambivalência, não se pode fugir. Não há motivos para apologia ao mundo que construímos, seja ele qual for; tampouco, há razões para tentar destruí-lo. Na verdade, possuímos menos controle sobre a realidade, do que acreditamos ter no mundo moderno, onde tudo parece ser tão perecível. Somos mais irrelevantes do que nossa vaidade quer crer.

5.

É possível amar no mundo hipermoderno? De cara, é possível amar em qualquer época do mundo. O amor é um elemento permanente da vida humana, que se exterioriza de diversas maneiras, mantendo ainda assim, uma unidade. A questão é que nossa época mina as bases que possibilitam a entrega nas relações afetivas. Sem sair da frente do espelho, não é possível encontrar-se de verdade com o outro, e descobrir a si próprio.

As pessoas são cada vez mais senhoras do seu tempo, usufruindo da liberdade para escolher como irá preenchê-lo. Apesar das obrigações, no estudo ou no trabalho, estas não chegam nem de longe, perto das que já tivemos, como a responsabilidade com uma comunidade, o respeito para com um bem maior, etc. Ainda assim, essas pequenas responsabilidades são tidas como um peso escorchante para muitas pessoas, que sem dar-se conta, viraram escravas da própria vontade.

Ao mesmo tempo em que, as pessoas se tornaram mais vaidosas, mimadas, fúteis, e tratam seus sentimentos de maneira ainda mais perecível; cresce, quase como um desespero, a ânsia pelo encontro de um grande amor. Sentindo a ausência de algo com verdadeira profundidade, o frágil indivíduo hipermoderno lança-se ao mundo em busca disso, fazendo do amor uma tábua de salvação, da qual a generosidade – que lhe é marca – impede esse encontro desesperado. O fruto dessa dialética entre ausência e ensimesmamento, é o fortalecimento das fantasias, ilusões, ou seja, das afeições imaginárias.

Pior e mais exemplar deste mundo do que a descartabilidade dos “ficantes” é a sucessão de paixões fluídas. Se no primeiro caso, temos a efemeridade do corpo e do sentimento, onde – de partida – proíbe-se a entrega e o envolvimento; no segundo caso, temos a efemeridade do amor, com paixões relâmpagos, que tudo eram num dia, e nada se tornaram no outro. Da entrega absoluta e imediata à “desentrega”. Em ambos os casos, desaprendemos a respeitar o sentimento alheio; pois, tratamos nossos semelhantes como “uma porção de comida rápida”, previamente embalada a espera do contato rápido, pronta para nos alimentar brevemente.

Um sintoma disto é que em busca deste sentimento, “de que algo infinito foi perdido” e que precisa ser prontamente recuperado, passamos a encarar a inveja, a dor, as lágrimas, não como elementos constitutivos da vida humana em sua ambivalência, mas como obstáculos que precisam ser eliminados. Mas, na vida, tudo é feito de dores e alegrias, lágrimas e risos. Só na boca de qualquer idiota, as frases já estão feitas: “seja feliz!”, “busco leveza e alegria”, etc.

Longe de retomar a experiência, este homem que suspira lentamente por algum momento de profundo, seja por paixões fluídas ou num gozo desesperado com um desconhecido, é guiado pela falta de constância. Nem mesmo temos mais tempo para cultivar nossos desejos. Pelo contrário, dominado pela fantasia da vez, que no dia seguinte, já se desfaz, agimos de maneira impulsiva, esperando o cumprimento dessa vontade, tão firme quanto à constância de uma geleia. Se o amor que queremos dar é efêmero, o nosso ser também o é.

No centro deste homem sem responsabilidades, personalidade, constância, encontra-se a vaidade. Mesmo quando ele pensa estar agindo com alteridade, ao ansiar um encontro com o outro, é tomado, na verdade, por uma fantasia própria que deseja se cumprir. Ao não ver tal promessa cumprida, ele revolta-se contra quem isto lhe negou, e age de maneira arrogante e mimada, mostrando que de amor: nada sabe.

A “outra face da moeda” deste homem diluído encontra-se na figura do Don Juan pós-moderno (que obviamente, também serve as mulheres), que possui como propósito o encontro com a humanidade, simbolizado no descarte afetivo. Hoje, não mais você; amanhã, continuo com aquela outra; depois de amanhã, tentarei a próxima que irei conquistar. Como se frequentasse um grande mercado afetivo, tendo em suas fantasias e quereres uma moeda, esta triste figura fez de si e do seu afeto uma “mercadoria universal”, onde as pessoas são trocadas com a mesma desenvoltura e facilidade com que se faz com as coisas no mercado. Não passa de um pobre diabo assustado, vivendo “em baixo da cama”, com medo da entrega e da realização do amor no mundo, porque longe da certeza, estes dois elementos sublimes só nos trazem a incerteza, a possibilidade, o horizonte da dor, e não raro, do sofrimento e prazer mais ambíguo e conflitante que se pode ter como experiência. E nesta falta de compromisso e respeito, cristaliza-se a grande feiura afetiva de nossa época.

Em O Banquete de Platão, Eros aparece como um daimon, intermediário entre deuses e homens, criador de laços entre eles. Eros é filho de Póros (o estratagema) com Penia (a penúria), e que por ser concebido no dia de nascimento de Afrodite, ama o belo. Eros é carência que busca plenitude. Por isto, deseja o profundo das coisas. Se fosse completo, não a amaria, pois já a possui. Se fosse puro corpo, julgar-se-ia completo e nenhum reencontro real poderia desejar.

Ao contrário da maleabilidade das fantasias, o amor é durável, perene, imortal. O amor é a magia de um mundo desencantado, é o desinteresse de um mundo de interesses, é a inutilidade no mundo útil do cálculo racional dos adultos. Amor é um desejo cultivado, e não uma fantasia. No entanto, será que ainda existe espaço para o amor numa vida em que se cultua cada vez mais à coisificação do prazer? Num tempo hedonista, dominada pelos sentidos, qual a pretensão do amar?

Acontece que, o amor não é uma relação pragmática, um encontro entre duas pessoas, uma relação sacramentada, um namoro ou um casamento. O amor é um sentimento profundo e amplo: é fazer da sua liberdade, o desejo de ver os outros.  O amor encontra-se na solidariedade da criança que divide o seu lanche no colégio, no olhar fraterno do velho avô com o seu novo neto, no cuidado dos pais com seu filho pequeno e indefeso, no sexto sentido da mãe, nos olhares apaixonados dos amantes, no encontro do professor que ajuda seu aluno, no perdão da mãe que vai visitar o seu filho na cadeia. O amor é desinteressado, não quer mudar o mundo. Ele é trivial, pois enxerga o outro em sua inteireza, pois, independe de virtudes e defeitos, perdas e ganhos. Amar é enxergar o mundo com solidariedade, e não como uma criança mimada querendo adapta-lo aos seus impulsos e fantasias.

Neste sentido, Camus é preciso quando demonstra a incompatibilidade entre o amor e a revolução. O homem revoltado ama um homem que ainda não existe, nem irá existir, e que não passa de uma projeção de suas fantasias. Ao contrário, o amor é uma expectativa real de troca, uma entrega pelo que não se possui, estando dessaturado de vontade, individualidade e vaidade; mas que, espera a reciprocidade. Ou seja, um ato de fé. Porque, o amante busca no amado a essência que não possui. Nisto, supre a falta e se torna pleno, de modo dialético, recíproco.

Portanto, a postura de amor diante do mundo exige o reencontro com a experiência. Só com a unidade do nosso viver, podemos diante das ambivalências da vida, nos procurar no encontro com o outro. Recuperar a dignidade das relações afetivas é preservá-la da falta de sentido deste mundo efêmero, caótico, descartável. É fazer do corpo uma fortaleza, morada viva, e não um escravo do impulso. David Foster Wallace sabia disto quando dizia que “a liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros – no cotidiano”. Essa é uma liberdade real, humana, generosa, amante, que merece ser vivida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário